Quando me vi vento me desesperei para não esvair entre seus dedos.
Soprei o teu rosto talvez um pouco forte demais
Perdoe, foi para que me sentisse, ainda, perto de você.
Tentava te envolver e em vão me fazia, aprendendo o evento que é ser vento.
Quando me senti vento,
não mais me sentia.
As pessoas continuaram sendo pessoas, até você deve ter continuado sendo você.
Eu, brisa. Quente, horizontal, gelada, suave, ríspido, circular.
Existindo preenchendo vazios, ocupando tudo que é disponível. O deixar de ser é o meu permanecer.
Conheço, pois, a existência sem limites, tendo todas as possibilidades e, no entanto, nenhuma. Sendo vento, meu ir não vai, de fato, a canto algum.
Já estou,
mesmo que indo eu possa até uivar.
mesmo que meu movimento leve o que vai pelo caminho: folhas, máquinas, gente, você.
Não veja melancolia nas minhas palavras de vento. Mesmo que houvesse uma, não me bateria à porta nenhum título de saudosismo a cobrar boletos.
Experimento a liberdade, que só é possível inteira,
que não saberia aceitar complementos ou adjetivos que tentassem definí-la.
Vento-me livre,
sopro-me,
sou.
terça-feira, 5 de junho de 2018
Exercício no. 1
Acordei com
vontade de te escrever. Pensei bem no que poderia dizer e cheguei a conclusão difícil e dolorosa confusão nada será como antes. Frase de efeito e
clichê, mas não foi assim como tudo se desenrolou? Eu lembro até hoje da cor da
toalha na mesa do bar. Você reparou que tinham dois fios soltos? Eu reparei.
Talvez aqueles fios ali tenham sido um sinal.
Algo me dizendo que alguém iria
se sentar ali e que, como na toalha, seríamos dois fios soltos. Teríamos – e
tivemos, por muito tempo, você lembra? – a ilusão de que nos fazíamos trança.
Como eu lembro de ser você. Como eu me lembro da angústia que os seus problemas
me causavam. Dor física. Lembro do frio na barriga que precedia cada nova
notícia, cada conquista, o sabor da vitória que eu não sabia de quem era. Tudo
meu foi, ainda é, seu. Hoje, escrevendo para você depois de tanto tempo, eu nem
sei o que você pensa de mim. Será que guarda nossos vinis? Fiz questão de
deixa-los com você. Uma tentativa dissimulada de me preservar na tua memória.
Será que você percebeu?
Penso em
como as minhas palavras irão te achar. Como café quentinho, coado na hora com
muito pó e pouca água. É assim que você, gosta, não? Como aquela música que a
gente acorda com a letra na cabeça e quando coloca muda o dia, nos faz sentir
solares independente do que aconteça fora da janela. Será que vai ser como aquele
gole errado que você dá na latinha que está sendo usada para depositar as
guimbas de cigarro? Eu gostaria de saber com que lentes você me vê. Gostaria de
não ter que imaginar cenários, dia após dia. Sim, se você se perguntou. E sim,
mesmo que não tenha perguntado. Todo dia meus pensamentos vão até você. Até
vocês. Hoje, para mim, você são vários. Tem o que me acolhe, tem o que ainda me
ama e não sabe dizer, tem o que não me reconheceria se me visse na rua.
Será que
você apagou a tatuagem que fizemos? Lembra, naquela viagem que eu já nem lembro
para onde, num lugar que também não me lembro. E no entanto ela está aqui.
Memória carnificada, me lembrando todo dia que a gente foi, talvez ainda seja,
um. Eu não consigo te deixar. Você deve achar louco, não é? Eu te deixei e
agora te escrevo dizendo que não deixei. Mais um fio solto na nossa colcha de
retalhos. Acho que quando eu fechei a porta e olhei para a sala, te vendo em
cada pedacinho, foi como se a Âncora saísse daquele quadro que eu adoro e
tivesse se amarrado ao pé. Eu te levo nos meus passos, te espalho nas minhas
palavras. Seja em comentários com a Irene, seja estragando cada novo encontro
falando apenas do nosso.
Voltando ao
bar, você lembra como era clichê? Como foi clichê, o nosso amor. Aquele bar de
quinta, o melhor pastel, a cerveja mais gelada. Eu e você ali sem estarmos
cientes de nós. Eu lembro de como você puxou assunto, de como te achei
desengonçado e fiquei completamente apaixonado antes mesmo de saber seu nome.
Foi uma iluminação quântica, eu senti em cada uma das bilhões de células do meu
corpo que elas precisavam se fundir a você. Talvez ali eu tenha errado. Como
quando eu achava que podia tomar mais uma cerveja e, mesmo você me advertindo
sobre o futuro inevitavelmente próximo e certo, tomava. Me joguei sem medidas
em você. Foi como se tivesse sentido o estômago apertar, o pulmão esvaziar e,
ao ver a luz do fim do túnel, tivesse aceitado, sorrido, dançado com a morte. A
morte de um eu que se construía. Um eu que não teria aberto mão de Buenos
Aires, que teria agido diferente naquele dia que você deve lembrar bem e que
não colecionaria arrependimentos e mágoas numa caixa de costura. Eu me lembro
exatamente da tarde em que decidi me deixar.
Havia feito sua comida favorita,
com o esmero habitual. Os tomates foram picados em quadrados idênticos, a
cebola era quase inexistente de tão pequena - você ainda não gosta de
percebê-las? Me servi uma taça de vinho e arrumava a casa para te esperar. O
telefone tocou três, quatro vezes e eu vim correndo do quarto sabendo que seria
você. Como me acelerava o coração saber que iria ouvir a sua voz. Mais uma vez
você disse que não iria conseguir. Algum problema no escritório de Tókio, ou o
Japão seria a semana passada? Enchi novamente a taça. Vinho, decepções,
lágrimas, revolta.
Aí aconteceu
um momento mágico, que acho que eu nunca te contei. Na parede da sala em que a
gente usava um projetor para fazer maratona do Almodóvar eu vi projetada a
nossa vida. Não era um filme. Era uma seleção de imagens, como fossemos uma
exposição de fotografia. E cada retrato eternizava um momento de abandono. Em
cada foto eu me reconhecia menos e pude ver, claramente, o espectro sem vida,
um reflexo morno, seu. Eu lembrei que eu já havia tido convicções políticas que
divergiam das suas. Lembra, da nossa primeira briga? Eu continuei gostando do
Jango e achando ele um cara foda, acho que nunca mais falei. Até o meu voto foi
para você. Naquela tarde, eu vi as fotos de todos os amigos que foram deixando
de me reconhecer. Eu lembro bem da Martinha, com os olhos claros e sérios
fixados nos meus. Ela dizia que eu não podia viver para você. E eu a achava tão
boba. É claro que a gente vive um para o outro, é assim quando se ama. Vi o
Jorge, com aquela barba que era motivo de orgulho e talvez tenha sido o pivô da
nossa briga. Vi o casamento da Larissa, a formatura da Nanda e o batizado do
filho do Pedro que eu perdi. E vi todas as fotos deles, juntos, em quantas
outras vezes, dias e datas em que eu nem recebi o convite.
Você lembra
do primeiro ano? A gente viveu a base de maconha, macarrão e vinho. Meu
rendimento no trabalho caiu, o seu eu não consigo lembrar. Acho que não, porque
toda a minha potência foi para você. Foi quando você concluiu o mestrado ou o
doutorado que me fez aquela dedicatória tão linda? Acho que sou capaz de
lembrar de cor. Era algo como “Meu amor, sem as tuas horas de dedicação
absoluta, não haveria um início e nem o último ponto final.” Era isso?
Engraçado, achei cafona e de mal gosto. Quem reconhece o furto do tempo alheio
com uma frase?
Naquela
tarde, o sol baixava devagar. Era verão e o sol foi se pondo com calma,
penetrando por muito tempo a nossa sala e, conforme a penumbra chegava, as
fotos viravam um espelho, do escuro que havia em mim. Não me lembro se ainda chorava.
Lembro do
esmero com que eu dobrei cada camisa – as de malha e de botão. Deixei para você
as melhores malas e os vinis da sala. Saí sem trancar a porta, por que às vezes
você saia (ainda sai?) sem chave. Deixei um bilhete:
“Meu amor, o
jantar está no fogão. Aqui estão as minhas chaves, a minha aliança e o nosso
fim. Não tente me procurar, pois nem eu sei onde me encontrar”.
Você
realmente não tentou. Será que eu só fiz o que você já ansiava? Será que foi
uma vontade sua que eu demorei para perceber? Será que você pegou tanto de mim
que já sabia onde encontrar? Você foi olhar no espelho para ver que eu levei
tudo, menos a mim?
É inútil
perguntar. Quando eu te lembro sádico eu imagino como você iria saborear a
oportunidade de me deixar confuso. De jogar com cada dúvida que eu tenho até
que não sobre, novamente, nada.
Mas, deixa
eu te contar do muito que aconteceu. Se hoje eu jogo palavras em papel, até com
razoável sucesso, você deve saber, é porque, quando eu fechei aquela porta, eu
morri. Você morreu. O sol derreteu a âncora.
Eu já não
lembro mais exatamente como foi. Tiveram conversas? Súplicas? Eu te implorei
para que me perdoasse por te deixar? Você me pediu para ficar?
Eu fiquei.
Eu estou e arrisco com pena dizer, estarei.
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