segunda-feira, 10 de junho de 2013

Vermelho

Ela passou as mãos gentilmente pelas têmporas cansadas e dominadas por rugas. Sabia que aquelas marcas eram precoces e de sua responsabilidade. Deu-lhe um beijo na testa e saiu.

Não olhou para trás.

Levava uma bolsa arrumada como a decisão, às pressas. A vontade era voar dali pela janela.
Não poderia assistir ao lento definhar do seu último resquício de razão, da sua salvação de sempre. Não poderia ver a parte sã de si, mesmo que externa, agonizar até o levantar do dia, quando certamente já não agonizaria mais.

Precisava de uma dose. Onde?

Lembrou-se dos velhos amigos e ao fazer lembrou-se do quem deixou para trás. Lembrava-se de como a criara, cheiro de mato; amoras frescas. De como a tirara anos depois de um mundo torpe, fantasioso e lutado com e por ela. Passou a mão em sua cabeça e lhe garantiu que tudo ficaria bem. E havia mesmo ficado, até hoje. Por que logo hoje? 

Sentiu-se covarde. Uma culpa dilacerante bombeou suas veias e o medo de ser tarde demais tomou conta de suas pernas que se voltaram e correram, sem reparar no amontoado de ferro vermelho que se aproximava.

O vermelho se fundiu e escorreu no asfalto, molhando até o meio fio. Culpa, remorso, dor, paz...e nada.  Enquanto o sangue dançava livremente pela rua, a vida se despedia do velho sozinho na sala do apartamento. Morreram juntos e sozinhos.  

Iriam se encontrar? Ele a tomaria novamente no colo e diria com a voz rouca e o cheiro de tabaco que estava tudo bem?


O vermelho invadiu a rua, encharcou o corpo e a memória dos passantes. Subiu ao céu travestido de entardecer e brilha forte até hoje, quando noite, na forma prata mais vívida. Mas nós sabemos, é vermelho.