Não olhou para trás.
Levava uma bolsa arrumada como a decisão, às pressas.
A vontade era voar dali pela janela.
Não poderia assistir ao lento definhar do seu último
resquício de razão, da sua salvação de sempre. Não poderia ver a parte sã de si,
mesmo que externa, agonizar até o levantar do dia, quando certamente já não
agonizaria mais.
Precisava de uma dose. Onde?
Lembrou-se dos velhos amigos e ao fazer lembrou-se do quem deixou para trás. Lembrava-se de como a criara, cheiro de mato; amoras
frescas. De como a tirara anos depois de um mundo torpe, fantasioso e lutado com e
por ela. Passou a mão em sua cabeça e lhe garantiu que tudo ficaria bem. E
havia mesmo ficado, até hoje. Por que logo hoje?
Sentiu-se covarde. Uma culpa dilacerante bombeou suas
veias e o medo de ser tarde demais tomou conta de suas pernas que se voltaram e
correram, sem reparar no amontoado de ferro vermelho que se aproximava.
O vermelho se fundiu e escorreu no asfalto, molhando até o
meio fio. Culpa, remorso, dor, paz...e nada.
Enquanto o sangue dançava livremente pela rua, a vida se despedia do
velho sozinho na sala do apartamento. Morreram juntos e sozinhos.
Iriam se encontrar? Ele a tomaria
novamente no colo e diria com a voz rouca e o cheiro de tabaco que estava tudo bem?
O vermelho invadiu a rua, encharcou o corpo e a memória dos
passantes. Subiu ao céu travestido de entardecer e brilha forte até
hoje, quando noite, na forma prata mais vívida. Mas nós sabemos, é vermelho.